Mês: dezembro 2011

Pandora’s Box – 9 – Farol

Quase cinco dias haviam se passado desde quando viram o último barco, aquele que tomaram a carga de comida. Depois disso, nada. Nenhuma alma humana ou similar passou por perto deles; alguns animais e monstros deram as caras, mas não chegaram a causar problemas. A tripulação começava a ficar impaciente e entediada; Kyle só respondia com um “Vocês tem muita pressa. Já estamos chegando.”

E de fato, estavam. Na noite do quinto dia, uma neblina densa começou a envolver o navio e Kyle, vendo isso pela janela de seu aposento, prontamente correu para o convés, gritando para seus homens.

– Estamos chegando! Façam o que fizer, não soltem do navio. Não escutem qualquer outra voz que não seja a minha. – Disse isso já chegando no convés – E não deixem a luz leva-los.

Disse isso com muita seriedade, fazendo com que todos os novatos se segurassem com força no que pudessem, alguns desembainhando suas espadas ou pistolas com as mãos trêmulas e um suor frio. A neblina era densa e fria, como uma lufada de gelo, congelando até os ossos do corpo, mas não era um frio natural… Era mais uma sensação de falta de calor, falta de emoções. Se soubessem como a morte é, estariam certos em comparar esse frio com ela. Kyle era o único que parecia tranquilo em sua poltrona, nem um pouco preocupado com o frio. Sentia-o, é claro, mas o frio não era algo que o incomodava nem um pouco.

Então ouviram. Um coro de vozes dissonantes começaram ao longe e foram se aproximando, se aproximando até que pareciam tão perto quanto a própria pele do corpo. E de fato estavam. Diversos tripulantes soltaram gritos de horror ao ver e sentir as almas desgarradas flutuando por entre a neblina e o navio, sendo atraídas pelo calor corpóreo dos vivos e absorvendo-o, causando assim o frio.

– Não entrem em pânico! – Exclamou Kyle. – Se não aguentam nem isso, não sei como vão sobreviver a praia. Troy, faça alguma coisa.

Kyle parecia meio irritado, desvencilhando-se das diversas almas que tentavam se aproximar dele e de seu rum. Troy e os outros tripulantes mais velhos estavam calmos se comparados aos novatos e simplesmente afastavam as almas com as mãos ou com magia como Gallan. O Bardo acatou as ordens de seu capitão e começou a tocar um tom leve que foi se expandindo lentamente até tomar todo o navio, afastando como uma mão gigante toda a neblina e as almas principalmente. Com isso, o calor de cada um – e um pouco de sua coragem perdida – voltou; Voltou a tempo de verem o tremendamente grande Farol de Hakk logo a sua frente.

Era uma torre gigantesca com uma luz que cortava a neblina, chamando por todas as almas que ali estavam. Estavam finalmente no Farol de Hakk, a ilha dos mortos.

Morgana navegou com leveza próxima a encosta, circulando o farol de acordo com as ordens de Kyle, até chegar no que um dia aparentemente havia sido um porto, mas que agora estava completamente velho e abandonado.

– Aqui está ótimo. Não é o porto principal, por isso está assim, mas ok. Homens, e Morgana, minha querida, a partir deste ponto, todos nós temos uma chance um tanto quanto grande de morrer.

Falou isso com calma, checando a munição de sua pistola e guardando-a nas vestes.

– O lado bom é que não teremos que ficar vagando por aí, já estamos na ilha dos mortos mesmo. Bem, vamos nos separar em dois grupos; um vai comigo até o farol e o outro ficará aqui no navio, protegendo-o com unhas e dentes.

Um dos tripulantes, o mais novo, que antes ficava no cesto no mastro, se pronunciou.

-… Proteger o navio de quê?

– Ótima pergunta. E a resposta resumida é: Qualquer coisa que se mexa.

Sobre mundos e amores‏

Fazia frio, mas a água estava tão quente que eles nem notavam. Seus corpos despidos de qualquer vergonha ou pudor. Aquele foi o banho mais demorado da vida deles e mesmo assim foi pouco: sempre se quer mais. A cama forrada apenas com suas roupas descansava, ela merecia.

Saíram do banho, foram para o quarto. Exaustos. Enquanto decidiam o que iriam almoçar, a campainha do quarto tocou.

– Não pedi nada – disse ele.
– Nem eu.

Ignoraram uma, duas, três vezes, até que parou. Mas agora eram gritos que vinham da rua que os deixaram alarmados: carros se chocando e de repente uma sinfonia de sirenes e buzinas. Alguém esmurrava a porta, gritando e chorando. Isso fez com que despertassem para um perigo desconhecido.

Os murros pararam, mas pedras caíam da encosta a frente e se chocavam contra o prédio, esmagando carros e o que mais pudesse estar no caminho. Foi só o tempo de se vestir com as roupas amassadas e sair do quarto: o teto acima da cama que estavam veio abaixo. Desceram correndo pelas escadas e viram pessoas no chão, pessoas mortas.

Assim que ganharam a porta da frente do local, e viram a escuridão que o dia se tornara, entenderam instantaneamente o que estava acontecendo: o mundo acabava.

Uma chuva forte tinha começado a cair junto com bolas fogo. Eles se olharam e percebiam o mal que tinham acabado de causar. Aquele era o amor proibido, não deram ouvidos quando foram avisados. Eles tinham acabado de sentenciar o fim não só daquele mundo, mas de todos os outros que lhes pertencia. Tudo por amor.

Apolo fora do seu céu e Artemis não era mais pura.

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Contribuição de Thiago Radice.

Peter Pan está morto

Wendy era uma bela garota londrina, loira, cabelos compridos até à altura das omoplatas, e tinha um corpo desenvolvido demais para sua idade. Nos últimos três meses vinha tendo sonhos recorrentes e muito estranhos, com um garoto, aparentando ter uns quinze anos, de cabelos castanhos claros e olhos azuis-acinzentados, de olhar misterioso e sedutor, que dizia se chamar Peter Pan. Naquela noite estava imersa em outro pesadelo, onde corria numa mata escura de mãos dadas com Peter, e eles fugiam de um bando de homens que estavam armados e atirando na direção deles. Correram até se encontrarem à beira de um precipício. Peter olhou para ela, com um olhar maroto, e pediu que ela confiasse nele, e pulou, levando-a consigo. Wendy acorda suada e olhou ao redor, seu quarto estava escuro tinha apenas a parca luminosidade da lua crescente. Ela suspirou e passou as costas da mão na testa para secar um pouco do suor quando se espantou ao ouvir uma voz masculina e familiar vindo da direção da poltrona:

– Me desculpe por te fazer passar por esses pesadelos.

– Quem é você? – ela acendeu o abajur do seu criado-mudo, enfim vislumbrando a figura de Peter esparramada na poltrona.

– Então você é real? Ou isso ainda é um sonho?

Ele se levanta e caminha até à cama, se agacha e segura o pulso dela.

– Um sonho faria isso?

Ela rapidamente se livra da mão dele e diz:

– O que você quer?

– Preciso que você me acompanhe até à Terra do Nunca. Só uma garota deste mundo pode ajudar a mim e aos meus amigos a salvar aquele lugar.

– Você quer que eu saia no meio da madrugada da minha cama quentinha pra acompanhar um garoto estranho em um lugar “encantando” e se meter em alguma grande “aventura”? Nem sonhando!

– Wendy, sério! Você precisa confiar em mim.

– Assim como agora há pouco no sonho, quando você pulou comigo no precipício?

– Ai, caramba! Você já se esqueceu do pó mágico que me permite voar?

Wendy fez cara de quem deve ter dormido e perdido algum episódio.

– Vamos! – Peter pegou pela mão, foi à direção da janela, que estava aberta, e saltou, levando a garota aos ares.

– Aaaaaaah! – ela gritou.

– Shh, Wendy! Quer que sua família ache que você está sendo sequestrada e chamem a polícia?

– Mas não é exatamente isso que você está fazendo??

Eles voaram por muito tempo, mesmo sob os protestos de Wendy. Quando ela deu por si já estava sobrevoando uma selva tropical, diferente de qualquer coisa que poderia ver na Inglaterra, sem contar a areia e o mar, que emolduravam o horizonte. Pousaram numa clareira, iluminada apenas pela luz da lua cheia. Ela podia ver a luz de alguns archotes que estavam no interior de uma trilha, ali perto, e ficou menos tensa ao perceber que não estava num lugar aleatório no meio de uma selva desconhecida.

– Onde estamos? – Wendy indagou.

– Em minha casa. – ele respondeu, e na sequência deu um assobio bem alto, usando os dedos entre os lábios.

Alguns garotos, de várias idades, etnias e alturas, emergiram das matas trevosas, e Wendy tomou um susto, levando a mão ao coração.

– Quem são eles?

– Meus amigos, os Garotos Perdidos.

Um deles, loiro e gorducho, arreganhou a boca e mostrou seus caninos salientes, e seus olhos cintilaram na cor vermelha, e chegou bem perto de Wendy, que gritou e se escondeu atrás de Peter.

– Epa! Vai com calma, Bicudo! Ela não é sua comida! – falou Peter, afastando-o com a mão.

– Peter, ele é um… – e antes que ela pudesse completar a pergunta, viu todos os outros garotos com os olhos brilhando, alguns com os grandes caninos para fora.

– Wendy, todos nós somos vampiros. – respondeu Peter, sorrindo e com os olhos também transformados, e com os dentes salientes.

Wendy estava apavorada, afastou-se de costas de Peter e com as mãos sobre a boca. Um dos outros garotos disse:

– Peter, ela está fedendo a medo.

Cabelo, ~o mestre do óbvio~. – debochou Peter. – Wendy, você precisa manter a calma. Sua ajuda é vital para o sucesso de nossa missão. E além do mais, você não pode se deixar levar pelas histórias que ouviu sobre a nossa raça.

Ela concordou apenas balançando a cabeça. Peter olhou para o afrodescendente e perguntou:

Deleve, onde está a pedra?

– Na minha tenda, senhor!

– Traga-a para cá e vamos logo ao templo! – ordenou Peter.

O garoto foi e voltou rapidamente, trazendo consigo uma pedra lapidada, do tamanho de um pêssego e da cor do âmbar, e entregou ao seu líder, que guardou num bolso, segurou no braço de Wendy, e alçou voo, acompanhado dos Garotos Perdidos.

Voaram por dez minutos até avistarem uma construção alta no meio da selva, com pilares como as dos templos gregos, e plantas trepadeiras cobrindo parte da estrutura. Pousaram em frente à grande porta do prédio e entraram receosos. Peter levava Wendy e metade dos garotos iam na frente enquanto a outra cuidava da retaguarda.

– Eu não estou enxergando nada. – reclamou Wendy.

– Cabelo, uma tocha! – ordenou Peter, que foi prontamente obedecido.

O lugar se iluminou, revelando uma arquitetura bem elaborada, ainda que em ruínas, e à frente deles, um altar com uma estátua feminina e correntes. Nisso, Bicudo gira em 180° e rosna, e todos os outros vampiros se viram também. Um bando de homens barbudos, segurando armas e archotes, surgem na entrada, e o da frente deles, com um gancho no lugar da mão, diz:

– Pan, meu inocente Pan. Não achava mesmo que nós não tentaríamos impedir você de fazer essa loucura, não é?

– Capitão Gancho! – ele exclamou.

Capitão Stewart, ele te chamou de “Gancho” de novo. – alertou um velho gorducho, ao lado do líder maneta.

– Eu ouvi, Smith! Eu não sou surdo. Essa foi a ofensa final, Pan! – e disparou sua pistola em direção a eles.

Peter moveu-se mais rápido que o olho humano e protegeu Wendy do projétil, sendo alvejado pelas costas. Wendy gritou com o susto e só viu de relance o sangue do jovem vampiro caindo em fartas gotas no chão.

– Peter, você está bem? – ela perguntou, sem obter resposta.

Os Garotos Perdidos voaram em direção aos homens do Capitão e houve vários disparos e gritos (dos humanos), e Peter, aparentando estar bem mesmo tendo sido alvejado, moveu-se em direção à parede esquerda e baixou uma alavanca, que acionou um dispositivo que fez com que o chão que estava entre o altar e a entrada do templo se abrisse, deslizando. Enquanto seus comparsas vampiros lutavam com os capangas de Stewart, ele encaixou a joia num buraco do tamanho da pedra feita no peito da estátua, fazendo com que parte do teto se abrisse. Wendy olhou maravilhada para o céu, mas foi pega de surpresa por Peter, que a colocou aos pés da estátua, acorrentando-a.

– Peter, o que significa isso?

– Desculpe, Wendy, mas eu menti pra você. O seu sangue será um sacrifício para despertar Nosferatu, o rei de nossa raça.

Wendy se sentiu profundamente traída e nada respondeu, de tão perplexa. Peter se agachou para pegar um punhal do cano de sua bota, e quando levantou-se viu que o Capitão Stewart estava de pé ao lado da garota, apontando sua pistola na cabeça dela.

– Como você chegou aqui? – olhando para a figura esfarrapada, mas ainda imponente de seu rival humano.

– Me entregue a joia ou eu estouro os miolos dela!

– Você sabe que eu posso arrancar sua cabeça antes de você puxar o gatilho! – retrucou Peter.

– Experimente. – desafiou Stewart.

Um disparo absurdamente alto rugiu pelo templo, e Peter caiu de joelhos no chão, com um rombo no tórax. Stewart riu freneticamente e disse:

– Excelente, Robert! – o Capitão parabenizou o autor do disparo, que estava de pé, na entrada do templo, com uma espingarda na mão. – Ainda bem que a garrucha especial feita para os chupadores de sangue deu certo!

Peter se refez e voou em direção a Stewart, arrancando sua cabeça, enquanto dois dos Garotos Perdidos estripavam Robert.

– Está para ser feita uma arma que possa acabar com Peter Pan! – vangloriou-se o líder dos vampiros, encurvado e com a mão no peito, que começava a se regenerar.

– Agora é a sua vez, mocinha! – disse à Wendy, cravando o punhal em seu peito e apagando a chama da vida da garota.

Houve um brilho intenso vindo do fundo do poço do chão aberto do templo, e o céu encobriu-se de nuvens púrpuras e trovejantes, e Peter Pan ria enquanto liberava na Terra um dos piores pesadelos de todos os tempos…

Pandora’s Box – 8 – Intimidação

Um dia inteiro havia se passado depois do discurso inflamado e da pequena demonstração de poder. Kyle estava novamente na sua poltrona, mais relaxado, enquanto Morgana conduzia o navio aproveitando o bom vento a favor. E os novatos que estavam aptos limpavam o convés. Ele também havia explicado o motivo de tacarem fogo nos inimigos, soltando aquela maldita fumaça mal cheirosa que havia seguido o navio junto do vento: essa mesma fumaça afastava qualquer outro monstro que pudesse ataca-los no caminho. Bem, não todos os monstros, mas já era de grande ajuda.

O Capitão comia um pedaço grande de carne, despreocupado, até que um de seus tripulantes, um dos mais jovens, gritou lá de cima do cesto do mastro.

– Capitão! Um navio com uma bandeira pirata se aproxima!

Isso foi o suficiente para agitar a tripulação mais nova e Trif e Firk, que vieram correndo de seus aposentos já com bananas de dinamite em mãos. Kyle, por sua vez, chamou Troy, o bardo, e sussurrou algo para ele que prontamente sorriu e saiu.

O navio que se aproximava do Maelstrom ostentava uma bandeira preta com uma caveira empalada por uma lança. Seus tripulantes eram, em sua maioria, humanos, que voltavam de algum saque qualquer. Alinharam os navios e um deles se aproximou, falando alto.

– Águas perigosas, essas, pra um navio com tão pouca gente. – Sorriu de lado, sendo seguido pelos seus companheiros que riam.

– Eu digo o mesmo. – Respondeu Kyle, se levantando mas dando mais atenção para sua carne que para os outros piratas – Nunca se sabe o que pode acontecer com um navio descuidado, não é mesmo?

Terminou de falar e lambeu os dedos, jogando o osso para dentro do outro navio, causando um pequeno rebuliço. Porém, antes que qualquer um pudesse fazer qualquer outra coisa, Troy apareceu caminhando no convés do navio inimigo, vindo de dentro dele. Tocava uma música calma porém complexa. O mais interessante era que o ar a sua volta parecia meio “pesado”, como se a música criasse uma neblina… Porque era exatamente isso que ela estava fazendo.

– Bem, todos dentro do navio estão desmaiados. Só faltam esses aqui de cima, Capitão. – Disse Troy com um sorriso, sentando-se na “borda” do navio inimigo, atrás daqueles que ‘conversavam’ com Kyle.

Todos ali começaram a suar frio e abaixaram suas armas devagar, abrindo um sorriso em Morgana.

– Bem, passem seus mantimentos pra cá e podem ir. – Ordenou Kyle, voltando a se sentar na sua poltrona, mais sério dessa vez. E obedeceram. Os homens que ainda estavam acordados passaram seus mantimentos para o Maelstrom e, assim que terminaram, partiram com pressa em direção ao porto.

– Bem, eu não esperava por comida de graça, mas não estou reclamando. – Disse Morgana, enquanto Troy se aproximava dela e do Capitão.

– Não achei nada muito estranho, capitão; Só que havia um caixão feito meio que as pressas dentro do navio, mas não havia corpo algum. Era um caixão para uma pessoa bem alta, tipo o Lynch. Fora isso, nada útil. – Reportou o Bardo. – Ah sim! A tripulação parecia bem assustada e cansada, e não foi por minha culpa.

– Humm… ok, eu tenho mais ou menos uma ideia do que foi que aconteceu. Obrigado Troy.

Ele se retirou e deixou Morgana e Kyle se entre-olhando com pensamentos profundos.

-… O que foi, Kyle? Você acha que estão roubando c-

Foi interrompida pelo capitão

– Rum. Eu acho que preciso de rum. É basicamente isso, não se preocupe agora… ainda temos uns… 3 dias de navegação.

Identidade


Fosse por medo ou fosse por sorte, o rapaz jamais falara sobre si mesmo a ninguém. Passava desapercebido nas rodas de conversa, se afundava na penumbra de todos aqueles egos e morais, e isso o deixava feliz. Ser invisível era a melhor de suas habilidades e acabou sendo também o seu final. Já nem era mais tão rapaz assim quando notou que sua vida inteira fora vivida na obscuridade, criando e não sendo reconhecido, aceitando cada golpe da faca do destino como sendo merecedor do açoite. Percebera então sua súbita frustração por todos aqueles que ajudou, salvou e ergueu, porém, nunca o haviam agradecido diretamente. Ele era o outro, mas o outro não era ele. Afastou seus pensamentos ruinosos, retirou os óculos da face, vestiu o seu manto e voou novamente ao chamado de alguém.
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Indisposição

Piscou. O alerta foi dado. Piscou. Fez-se todo o alarde. Piscou, coçou, suspirou. Arregalou! O alarme não para, é alto mas parece tão longe. Levante-se! – pensou – sustente-se! – bradou. O alarme não para. O alarme não funciona. Soou. O segundo alarme começou tão lentamente que ele pensou ser o mesmo. Aumentou! Seu ouvido agora entendia. Levante-se! Sustente-se! – brigou. Seu corpo já não respondia. Abaixou, minguou, parou: silenciou. Esqueça… – ponderou – agora é tarde. Acabou.

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Microcontos trazidos a você por Thiago Radice.

Enquanto eu tiver tempo

– “Sua idiota, tomara que você morra!” Assim terminava aquela conversa de Jonas e sua mãe, quando a mesma não autorizou que o mesmo fizesse uma tatuagem aos dezesseis anos. A partir daquele ano, Jonas nunca mais dera sossego a mãe. Sempre discutia, falava mais alto, respondia, ironiza e se pudesse ficava mais de três meses sem trocar uma palavra com ela.

Os anos se passaram e Jonas não estava satisfeito ainda, tentava de todas as formas ferir a mãe. Só não batia porque podia ir para a cadeia, mas ele encheu o corpo de tatuagem aos dezoito, fumava desde a época do início da rebeldia, chegava em casa todo dia bêbado, se não, drogado. Roubava dinheiro e objetos dela só para poder ver o desespero em seus olhos.

Depois de um certo tempo, ele nem mesmo sabia como havia despertado aquele ódio contra a mãe, tudo que pudesse fazer para atrapalhar sua vida, ele fazia. Mas ele não se importava pois devia ter sido algo muito importante para ele ter ficado com raiva.

Depois de uma sucessão de excessos, Jonas sofreu um acidente de moto. Ironicamente ele usava o capacete, mas sua coluna foi empactada contra um extintor de rua e na melhor das hipóteses, ficaria paraplégico. Num dia em que conseguiu acordar de fato após o efeito do coquetel de drogas anestesiantes e mantenedoras de sua vidas perder um pouco efeito, viu sua velha mãe sentada em uma cadeira ao lado de sua cama, pacientemente fazendo palavras cruzadas. Vendo aquela cena, ele perguntou o que ela estava fazendo lá. Com toda a paciência que os anos só fizeram aumentar, disse que estava cuidando de seu filho e nem mesmo ele poderia refutar tal cuidado. Tentou começar uma discussão aumentando a voz, porém uma sensação de enjoo o calou. Nesse momento se deu conta que não sentia a ponta dos pés.

Uma semana após o acidente sua mãe continuava a seu lado. Muitas vezes eles não falavam nada, só estavam perto um do outro e Jonas tinha várias coisas para falar a ela, mas todas eram grosserias e xingamentos. Lhe ocorreu que não conhecia sua mãe direito, passou tanto tempo bolando travessuras que não tinha conversado realmente com ela. Então em um domingo ele perguntou como ela estava. Foi o ponto de partida para uma conversa que se não fosse pelas horas de sono, teria durado mais de duas semanas.

Jonas só se intrigava com uma coisa, ele sabia que toda aquela história tinha começado há muito tempo, mas que tinha sido determinante. Sua mãe, depois de muito insistir no assunto, contou a ele o que poderia ter causado tal atitude.

Quando Jonas tinha seis anos, sua mãe lhe contara que ele tinha sido adotado, explicou toda a história de sua mãe biológica, uma amiga de infância de sua mãe que não tinha condições de criá-lo e um mês depois de seu nascimento, o entregou para ela. Aquela conversa trouxe algumas lembranças a tona. Jonas se lembrou da fúria de ser abandonado, de ter sido descartado. Porém acabara percebendo que ninguém nesse mundo o amou como sua mãe e mesmo ano após ano ela estava a seu lado, apoiando, suportando, encorajando e tudo o que se espera que uma mãe faça e até mais. Ele perguntou para ela por que não tinha insistido em lhe explicar o que contecia, mas ela respondeu que iria esperar a birra passar. Só não sabia que essa birra duraria tantos anos. Jonas tinha criado um bloqueio daquele dia e por isso nem se lembrava de ter sido adotado. Pediu desculpas a mãe e a abraçou como nunca havia abraçado.

Sentindo um pouco de água escorrendo no rosto, Jonas abriu os olhos. Estava deitado no chão. A mulher com a qual ele costumava ter relações sexuais estava um pouco mais a frente, com as pernas viradas de um jeito estranho. Os bombeiros começavam a cortar suas roupas na tentativa de prestar os primeiros socorros. Enquanto ele sentia seu corpo esfriando, virou seu rosto para o céu e viu uma roda de curiosos olhando para ele, dentre eles sua mãe sorria carinhosamente. Estranhamente ele podia sentir o calor do sorriso dela. Deu um sorriso de volta esperando que ela também sentisse seu calor e então fechou seus olhos.

Direto do front

Numa trincheira, dois militares, um tenente e um soldado, são os últimos sobreviventes do pelotão do qual faziam parte.

– Pelo jeito não tem mais nenhum inimigo por perto… – Diz o Tenente, um tanto preocupado.

– Nunca se sabe, Tenente. – Retruca o Soldado. – Eles podem ser pacientes.

– Se tivesse já teriam vindo aqui.

– É… Mesmo assim, é bom ter prudência.

– E vamos ficar aqui até quando?

– Não sei, senhor. Estou ao seu comando.

– Se sairmos só ao amanhecer, seremos alvos fáceis.

– Então vamos nos arriscar saindo agora?

– Se ficarmos aqui podemos sofrer um ataque surpresa.

– Mas o caminho até o acampamento é longo.

– Não importa. Não vamos ficar aqui para sempre. Faça agora uma análise do ambiente.

– Sinto não estar habilitado para isto, senhor. Apenas tenentes tem o treinamento necessário.

– Mas no momento eu sou o comandante e você é o meu subordinado. Logo, tem que executar a missão que te foi passada.

– Mas como eu não estou devidamente habilitado, uma análise errada minha pode colocar o senhor, meu superior, em risco. Seria uma temeridade.

– Bastante louvável a sua atitude, Soldado. Quando esta guerra acabar, te promovo Sargento.

– Sargento? Muita honra, senhor. Nunca achei que merecesse tanto apreço.

– Pois merece. Agora faça por merecer a promoção que irá ganhar e vá checar o ambiente

– Sim, eu irei mas… Para ser Sargento eu não precisaria fazer concurso?

– Nada de concursos, homem. Eu sou um tenente de três estrelas. E estamos em guerra. Dár-se um jeito para tudo.

– Sei. E como foi que o senhor se tornou tenente?

– Eu? Bem… Eu estudei na escola de oficiais, prestei concurso e… Mas o que isso interessa agora? Está me interrogando?

– Não, não, senhor. É que eu achava que para ser promovido a tenente teria que ter experiência de combate.

– E precisamos, sim. Claro que nem sempre estamos em guerra, fazemos simulações, e no fim dá no mesmo.

– Alguém já morreu numa simulação, senhor?

– Evidente que não, Soldado.

– Então, se me permite, senhor, acredito que não seja a mesma coisa.

– Por acaso está me interpelando, Soldado?

– De forma nenhuma, Tenente. Apenas imaginei que com tanta experiência, o senhor pudesse me mostrar uma boa tática para sair daqui.

– Muito bem, Soldado. Pensando uma boa estratégia, e estudando bem situação em que estamos, a melhor tática que podemos ter é a do conjunto: vamos sair os dois.

– Entendido, Tenente. Conte comigo protegendo a retaguarda.

Pandora’s Box – 7 – Mar

E finalmente zarparam.

A saída do Maelstrom do porto foi comemorada, não tanto pelo fato da amizade da tripulação com a cidade (que até que é grande; Kyle e Morgana são populares ali) mas mais pela felicidade de te-los FORA da cidade. Havia muita baderna, gritaria, bebedeira e brigas todos os dias por causa dos piratas e, por mais que gostassem de seu capitão, a cidade não era muito bem vista quando ele estava por ali.

E o mar próximo do porto de Barif é um mar calmo devido a grande quantidade de navios cargueiros e mercadores que passam, fazendo com que a grande maioria dos monstros e outras coisas hostis se afastem dessa parte. Claro que, quanto mais se distanciam do porto, maiores ficam os perigos. As vezes até literalmente maiores.
Dentro do navio (Bem, em cima dele na verdade) tudo calmo. Morgana estava apoiada no timão com uma cara de tédio enquanto Kyle estava meio que deitado em sua poltrona/trono limpando as unhas com a faca que normalmente carrega na bota.

– Então, vai demorar muito? – Perguntou Lynch, encostado no mastro, comendo uma maçã.

– Eu não estou ouvindo nada. Ainda. Relaxe, só queremos dar um susto nos novatos e ver quem continua no navio e quem pula fora ou sei lá.

Respondeu Kyle, guardando sua faca e soltando um bocejo longo. Toda essa tranquilidade terminou com um pequeno baque do lado do navio; algo quase imperceptível, mas o capitão escutou e se levantou, começando a se espreguiçar.

– Bem, aí está. Homens, as armas! – ordenou, retirando pistola e erguendo-a.

A maioria da tripulação demorou um pouco a reagir, mas todos foram obrigados a faze-lo quando cerca de 15 seres pularam do oceano para dentro do navio. Eram, para resumir, homens-peixe, com a pele completamente coberta por escamas grossas, de um azul escuro, barbatanas e garras grandes. São mais altos que os homens do navio (Da altura de Lynch) e realmente mais fortes (De novo, como Lynch…) que os outros. Cada um tem uma cabeça de peixe e dentes protuberantes, mas cada um diferente do outro. Não são bonitos, nem cheirosos e muito menos legais.

E todos pularam sem titubear em cima da tripulação.
Os novatos foram os primeiros a serem atacados e, felizmente,  não correram ou choraram por seus parentes, e sim lutaram pra valer, o que fez com que os “mais velhos” se juntassem a luta com um sorriso. Kyle, por exemplo, ajudava aqueles que estavam em mais apuros e falava um “Muito bem, você passou”. E, para aqueles que corriam e estavam pra pular do navio, ele não mostrava muito dó, atirando para matar e falando um “Reprovado”.

Depois de cerca de uma hora a luta tinha acabado. Os novatos em sua maioria estavam caídos no deck, cansados e machucados, enquanto os outros os ajudavam a levantar e estancar ferimentos. Lynch juntava os corpos dos atacantes e os jogava para fora do Maelstrom enquanto Gallan conjurava grandes bolas de fogo para queimar os corpos no mar, exalando um cheiro horrível. O Doutor enfaixava e costurava cortes com uma velocidade impressionante, anestesiando e remediando todos.

– Bem – começou Kyle – Todos vocês agora são piratas do Maelstrom e espero que, como hoje, protejam o navio e seus companheiros com suas vidas e podem ter certeza que o navio e todos os seus tripulantes vão te ajudar.

Terminou seu discurso erguendo o punho cerrado e sendo seguido por gritos de ânimo (e dor) de seus novatos.

– Agora, vamos nos apressar, sim?
Fechou os olhos por um momento e, quando abriu, uma pequena explosão de vento saiu de seu corpo, empurrando e até derrubando alguns dos tripulantes. O vento então foi para as velas e impulsionou com mais força o navio, fazendo-o seguir sua rota.

A flor do deserto

No meio de um extenso deserto, existe uma flor, de pétalas alvas e vistosas. Ela está lá, sozinha e firme (aparentemente).

Ela não lembra quando foi a última vez que choveu por aquelas paragens, mas a Natureza é sábia e fez com que ela aprendesse a guardar alguma umidade em suas raízes.

O sol é árduo o dia todo, não há sombra para ter uma trégua do calor, e à noite há poucos ventos para refrescar.

A flor está lá sozinha no deserto, sem um jardineiro para lhe regar, dar atenção. O solo nem sequer é rico em nutrientes, o chão é arenoso e insípido.

Mas a flor é persistente, e desde o instante em que começou a germinar acima do solo, ela é uma lutadora, brigando pela vida, mesmo que ela seja injusta.

Quando o vento sopra, leva seu doce perfume por quilômetros de distância, e isso consola a flor, pois ela pensa que sua fragrância leva alegria para outro ser vivo. O que ela não sabe é que não há criatura alguma nas redondezas, e se algum botânico visse uma foto sua, não saberia dizer seu nome nem que cheiro tem.

Como podem ver, a vida é ainda mais cruel do que ela aparenta, mas a ignorância, às vezes, é mesmo uma bênção.

E a flor continua lá, de pé, sozinha no calor do deserto vazio, e você aí, que tem outros para conversar, rir, chorar, dividir seus momentos bons e ruins, reclama do quê?

Infausta solução

Estelita estava mais desamparada do que no dia em que sua mãe morreu. Foi assim que estacara naquela encruzilhada. Por trás do esquecimento dos quatro grandes montes, se ouviu o grito rouco do seu pai quando dera pela sua falta. Estelita havia corrido descalça, com a roupa do corpo, em busca de um amor desatinado demais para se realizar. Quando chegou à praça, ouviu as botas dos homens do seu pai já bem perto. Não valia mais a pena ir.

Até poderia valer se à sua frente não estivesse Carminha com o seu séqüito de cupinchas armados para caça. Iam atrás da cabrocha que estava de namorico com seu marido. O dito que prometera o mundo para Estelita, e que agora fugia sozinho, deixando mala, Carminha, Estelita, e tudo mais para trás. De uma amiga lhe arrancaram o nome, e também pararam atônitos quando viram a própria vir correndo bem na direção deles. Sob o comando de Carminha, armaram a mira, foi quando Estelita parou.

Estelita ainda quis acreditar que havia uma saída, pela rua lateral, talvez. Isto se lá não estivesse o bando de Felinto que acabara de entrar na cidade disposto repor-se de mantimentos e, na saída, sacudir até o último vintém dos moradores. Pela cara deles, não havia polícia no mundo que pudesse lhes impedir. Muito menos os doze soldados que agora se punham de frente pra eles formando, então, junto com os homens de Carminha e os do pai de Estelita, um quadrilátero cujas principais linhas de tiro se entrecruzavam no ponto em que a cabeça da menina estava.

Um silêncio típico daqueles que antecedem desgraças se esparramou pela praça, e o vento, que açoitava os ouvidos, parou como se prendesse a respiração. Eram quatro e meia da tarde, e quando Robério, o homem mais novo de Felinto, se alvoroçou para dar o primeiro de uma série interminável de disparos, uma pedra do tamanho de um caminhão veio zunindo do céu e, com um estrondo improvável, abriu uma cratera que engolira metade da cidade.